domingo, 15 de abril de 2012

Heleno, um personagem dos campos de futebol












“Eu não sou um jogador de futebol, sou a própria vontade de jogar” 


(Heleno – O Príncipe Maldito, 2012)
Em 1951, Heleno de Freitas, um dos gigantes do futebol brasileiro, como o imortalizou o jornalista João Máximo, exigia – não era de seu feitio pedir – uma última chance no futebol. Com 31 anos, nervos em frangalhos, fora de forma, o atacante recorreu ao América, o humilde diabo carioca para, ao menos uma vez na carreira, ter a oportunidade de jogar no Maracanã, o estádio construído para a Copa do Mundo de 1950, “a minha Copa”, como dizia Heleno. O primeiro Mundial do Brasil, todavia, nunca foi de Heleno – e por conta da 2ª Guerra Mundial, nenhum outro houvera sido. Não que o tragicômico centro-avante tenha passado pelos gramados sem obter nenhuma glória; muito pelo contrário. Heleno viveu e desfrutou os louros da fama futebolística de forma intensa, e com a mesma intensidade saiu de cena. Dono de uma personalidade irrefreável, De Freitas foi o James Dean dos gramados brasileiros; o galã artilheiro que a sífilis condenou a uma morte lenta e inglória. Seja calçando um par de chuteiras sobre a relva ou vestindo um terno de linho nos cassinos cariocas, nunca houve um homem como Heleno. 

O Heleno doente é mostrado logo
no início do filme
E é exatamente esse o título da biografia do craque da década de 40, escrita pelo jornalista e autor Marcos Eduardo Neves – biografia essa que chegou aos cinemas nacionais no último dia 30, com direção de José Henrique Fonseca. Para resumo de conversa, o filme Heleno  O Príncipe Maldito é excelente, desde a magistral atuação de Rodrigo Santoro, que dá vida ao atacante, passando pela participação de Alinne Moraes como Silvia (uma personagem fictícia criada a partir da junção de várias mulheres da vida do jogador, entre elas sua esposa Ilma) e a colombiana Angie Cepeda como Diamantina, dois dos amores da vida de Heleno, até a fotografia de Walter Carvalho. Em preto e branco, as cores do Botafogo onde Heleno brilhou por tanto tempo, o longa de José Henrique Fonseca trata com sensibilidade poética a derrocada do jogador, com cenas tão bonitas e cruéis que seriam dignas dos versos de Augusto dos Anjos. Um exemplo dessa sensibilidade é a cena em que Heleno participa de uma roda de conversa com outros internos do manicômio de Barbacena, quando a sífilis já se apresentava em estado avançado. O galã de outrora aparece débil, sem os dentes, insistindo em enfiar um cigarro na boca de um doente sentado ao seu lado. O companheiro de calvário de Heleno recusa o presente, que lhe é empurrado à força. Mais fraco, o doente caí no chão, e é levantado por Heleno, que fica com remorsos. Culpado, o homem, aparentemente portador de Síndrome de Down, se emociona, e, com os olhos marejados, começa a pedir desculpas. Uma pequena amostra da beleza mórbida que permeia o filme e a carreira meteórica de Heleno. 

“Eu sou feliz com raiva” 

(Heleno – O Príncipe Maldito, 2012) 

Silvia e Heleno: um amor idealizado
para o filme
Apesar de ter gostado bastante do resultado final, aponto aqui algumas escolhas do filme que me pareceram equivocadas. A primeira delas, e talvez a mais importante, é a estrutura do roteiro. A história do craque botafoguense começa a ser contada a partir de sua doença; o primeiro Heleno a aparecer na tela é aquele consumido pela sífilis. A partir de então, o que se vê é uma narrativa entrecortada, que vai e volta nos momentos mais notórios dos 39 anos de vida do craque botafoguense. O incômodo que isso gera, além de tornar a história um pouco truncada para quem não a conhece, é a ideia de uma ligação causa/consequência entre os momentos de glória e de desgraça de Heleno. Após uma cena com um gol inesquecível, ou uma boa noitada na capital federal, sempre volta à tela o Heleno semi-morto, como se houvesse uma relação direta e incontornável entre a vida boêmia e desregrada de Heleno e sua posterior degradação. É claro que essas duas coisas estão interligadas, mas não da forma tão simples que o roteiro me pareceu sugerir – bastaria lembrar nomes como Maradona e, em menor grau, Romário, para não tomar isso como uma regra. Também não gostei da maneira como o filme coloca a descoberta da doença de Heleno. No longa, o jogador é avisado ainda no auge que possui sífilis, quando, na realidade, o diagnóstico só foi feito tardiamente, sendo esse um dos motivos da morte prematura do craque.

Fora isso, é a melhor experiência já feita pelo cinema brasileiro de tentar levar uma história do futebol para a tela grande. Nenhum outro filme conseguiu dramatizar o futebol com tanta competência, até porque a bola rolando no campo não é o grande foco do longa de José Henrique Fonseca. 

Há duas semanas em exibição no Brasil, só é uma pena que Heleno – O Príncipe Maldito, não tenha chamado tanto público para as salas de cinema. Até aqui, o filme ocupa o nono lugar na bilheteria nacional – mas uma vez que os líderes são Fúria de Titãs e Espelho, Espelho Meu, a bilheteria nacional não deve ser levada tão a sério. 

O Livro 

“Heleno de Freitas, o craque das mais belas expressões corporais que conheci nos estádios, morreu, sem gestos, de paralisia progressiva, e descansa, hoje, no cemitério de São João Nepomuceno, onde nasceu um dia para jogar a própria vida num match sem intervalo entre a glória e a desgraça.” 

(Armando Nogueira) 

Heleno de Freitas era muito mais que um jogador de futebol, era um personagem. Entre as diversas histórias, de trágicas a hilariantes, que Marcos Eduardo Neves narra no livro Nunca houve um homem como Heleno, uma relembra a final do campeonato brasileiro de 1944, decidido em cinco partidas. De um lado, a seleção paulista; de outro o escrete carioca, com Heleno no comando de ataque. Num dos jogos em São Paulo, quando os cariocas subiam para o gramado, foram recepcionados por uma chuva de ovos, bolas de gude e todo tipo de objeto à mercê dos atiradores de elite da arquibancada. Já no gramado, Heleno, que quase fora atingido por uma garrafa, é então entrevistado por um repórter: 

– De que você mais gosta aqui em São Paulo, Heleno? 

– Do aeroporto. 

– Por que? – perguntou ingenuamente o repórter. 

– Porque é o lugar mais próximo de se ir embora. 

A polêmica declaração se espalhou pelo estádio e acirrou ainda mais os ânimos. Os paulistas venceram aquele jogo por 4x3, mas perderiam a quinta e última partida, em São Januário, por 3x1, com grande atuação do controverso centro-avante. Assim era Heleno: decisivo, seja a favor ou contra seu time. 

“(Heleno) brigava com todo mundo e, em vez de ajudar, inibia os companheiros. Os jornais mentiam a seu respeito, inventavam histórias, diziam que ele, fora do campo, era um gentleman. Mas não era. Nem dentro nem fora de campo ele era um gentleman. Apenas um homem de nervos esbandalhados, vítima de um irrecuperável desequilíbrio nervoso. Das arquibancadas era difícil notar e os jornais puseram em moda a palavra temperamental, para definir seu mau gênio.” 

(Sérgio Porto) 

Marcos Eduardo Neves, autor da
biografia de Heleno de Freitas
É através de passagens engraçadas como a descrita acima, e outras bem mais trágicas, que o livro reconstrói a vida de Heleno com competência. Há que se destacar, além da riqueza de detalhes sobre a vida do craque, o contexto histórico que o autor faz questão de remontar a cada capítulo da biografia. Dados como a partir de quando os jogadores começaram a usar números nas camisas, ou os costumes em uso na sociedade carioca dos anos 40 e 50 ajudam a compreender melhor em que ambiente Heleno, nascido na pacata cidade mineira de São João Nepomuceno, construiu (e destruiu) sua vida no futebol. 

Heleno, uma figura literária 

A vida de Heleno, composta por toda a carga dramática que sua personalidade explosiva era capaz de captar, chamou a atenção de vários autores célebres. Um deles, Gabriel García Márquez, escreveu bastante sobre o atacante brasileiro à época em que este jogou na Colômbia. O livro de Marcos Eduardo Neves traz uma das crônicas mais célebres do escritor sul-americano sobre o craque, que reproduzo abaixo. Qualquer semelhança com o teor “filosófico” da cena final de Batman – O Cavalheiro das Trevas (The Dark Knight, 2008) não é mera coincidência (pelo menos para mim). Heleno, assim como o Batman vivido por Christian Bale no filme de Christopher Nolan, é o herói que precisa ser caçado, aquele que pode levar a culpa por tudo, porque ele aguenta o tranco. Enfim, melhor deixar Gabriel García Márquez explicar o que o craque representava: 

Dois domingos atrás o público de Barranquilla foi ao Estádio Municipal com o único objetivo de presenciar a volta do doutor Heleno de Freitas. Tenho a impressão de que, mais que as mãos para aplaudir, a torcida levava as gargantas para apupar. Não seria o mesmo Heleno de dois anos atrás o que naquela tarde iria aparecer no gramado. Era um homem completamente diferente, dois anos mais velho, já passado pelo torno de uma consciente e multitudinária análise, cujos resultados ainda são desconhecidos, o que impediu a todos que entendem de futebol atrever-se a dizer se Heleno é um gênio ou um palhaço sem o perigo de ter de se retratar no domingo seguinte. 

Os dirigentes do Junior mais uma vez trouxeram o advogado brasileiro aos gramados colombianos, e com isso demonstram possuir um inteligente conhecimento de psicologia coletiva. Um público que paga para ver um espetáculo de qualidade é, de certa forma, um público sem esperança, ao qual nenhuma atração promete futuro. No entanto, sendo Heleno o que está na proa, todo torcedor vai ao estádio como quem leva no bolso um bilhete inteiro de loteria. Porque com Heleno não existe meio-termo; ou, pelo menos, o público não quer isso dele. Se se comporta como um charlatão, o público sabe que comprou um bilhete em branco que lhe dá a oportunidade de vaiar. Em nenhum caso uma partida da qual participe Heleno tem probabilidade de se transformar num logro, porque vaiar, da mesma maneira como aplaudir, é uma força coletiva de reconhecer publicamente um fato. 

A torcida deve ter observado, pelas fotografias que foram publicadas na imprensa local, que Heleno não deve ter feito outra coisa no Rio de Janeiro senão engordar. De volta à capital brasileira, onde foi recebido como o personagem principal de um filme de bandidos, com revólveres e socos de ida e volta, o “maestro” – ou o palhaço – descuidou-se de seu regime, guardou no armário, juntamente com o calção e demais artefatos do ofício, suas práticas diárias de ginástica sueca, e ficou à espera de que lhe fosse dada uma absolvição, absolvição essa que chegou de onde ele menos esperava, ou seja, da episcopal equipe de Régulo Matera. Mas então Heleno começara a engordar. E o público de Barranquilla, que percebeu isso desde sua chegada, rompeu todos os diques para se permitir mais uma vez o prazer de vaiá-lo. 

Como semanas atrás me arrisquei a dizer, o Junior agora está completo. Quando vencer, será um time admirável, bem-ajustado, com um moral de cimento armado. Se perder – e oxalá isso aconteça poucas vezes –, Heleno se tornará mais uma vez o farsante, o bobalhão da pelota. E com isso o público ficará feliz, já que no futebol se segue a regra de que, quando o time ganha, a torcida também ganha, mas quando perde lhe cabe enfrentar sozinho a borrasca da derrota. Neste último caso, a torcida limita-se a pagar as apostas e a dizer – no caso do Junior – que, enquanto Heleno de Freitas estiver na Colômbia, as listras vermelhas e brancas não terão vez. 

(Gabriel García Márquez, jornal El Heraldo)
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